Se a vida é uma escola, é melhor a gente não se formar nunca!

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NUNCA SAÍMOS DA ALDEIA - A cidade como um mosaico de aldeias superpostas

O QUE É CIDADE? O QUE É ALDEIA?

Benévolo traça uma distinção muito segura entre aldeia e cidade. A primeira é um agrupamento humano elementar, com vizinhos morando próximos; um grupo com trabalho comum: a caça ou a coleta. A segunda constitui-se de um grupo onde ocorreu um excesso de produção alimentícia, sendo necessário armazená-la e designar agentes a controlar esse estoque, sendo que muitos membros do grupo já não carecem trabalhar na produção - nascendo daí outras funções: escribas, soldados, clero, administradores, produtores de tecidos, ferreiros etc.

Uma das provas memoráveis da minha faculdade de Arquitetura & Urbanismo no Mackenzie, em São Paulo, foi à base de apenas uma foto projetada na sala. Tive duas provas assim, e adorei ambas. Uma em Teoria da Arquitetura - a imagem mostravao hotel Unique, projetado por Ruy Ohtake e tínhamos de comentar livremente as impressões da imagem. Outra prova, mais desafiadora, foi na disciplina de Evolução Urbana, disciplina essa que dura apenas um semestre e na qual nosso professor tinha de comentar e elucidar o surgimento e o desenvolvimento das cidades nos últimos 6.000 anos. Ele saiu-se muitissimo bem, mas sempre comentava-nos, com bom humor, que cada o ritmo do curso o fazia explicar 3 séculos a cada aula, imagine!

Nessa última prova de Evolução Urbana foi-nos dada uma imagem fotografada do alto, mostrando a implantação de um assentamento pequeno. A prova perguntava-nos: isto é uma aldeia ou uma cidade? Até hoje admiro meu professor naquela ocasião pela profundidade nesta pedagogia simples. Esta pergunta gerou acesas discussões com meu grupo e o que a mim parecia muito óbvio, não o era aos meus colegas. A imagem mostrava apenas ruas, casebres, muretas separando casas e um largo no centro, como um pátio de encontros. Alguns itens difíceis de distinguir ao lado de algumas casas, e só. Sem ninguém à vista, o assentamento parecia abandonado. 

A mim tornou-se evidente: era uma aldeia. Não havia um grande armazém e não havia um centroadministrativo distinto das casas. Aos meus amigos tudo era muito confuso. As ruas, os itens espalhados, o largo, pareciam dar uma idéia de cidade. Era eu contra todos, com o no filme 12 Homens e uma Sentença, precisei convertê-los um a um até à unanimidade. Não que eu estivesse de todo seguro, confesso. No final de nossa discussão, meu temor aumentou: caso errássemos, haveria apenas um culpado para nosso desastre: eu! E uma das colegas, a mais reticente, deixou isso fortemente enfatizado! Ao final da história, acertamos. Ufa! E dali em diante constatei que essa questão parece ser crucial no estudo do urbanismo e nas muitas discussões acadêmicas que participei: cidade ou aldeia? Se estamos numa cidade, como estruturá-la e mantê-la apta ao seu crescimento ou outras situações?

Há tanto problema na administração de uma cidade, que a aldeia é vista como a primeira infância imbecil de todo o processo. Como aquele agrupamento tosco, sem divisões de classe, sem organização complexa. A aldeia, de certo modo é, como dizemos entre nós, "a roça", o lugar inculto, primário, de onde muitos de nós viemos, mas para onde ninguém gostaria de retornar. 

Aqui entra meu questionamento. 



Será que essa visão simplista é válida? Constitui esse conceito uma força útil para a construção do pensamento urbano? Ou teria Benévolo falhado em suas premissas e somos hoje reféns de um entendimento primário que carece de ajustes?

Por apostar na última opção, decidi escrever este ensaio


SILOS COMO DEMARCADORES?

Se pensarmos nas aldeias como distintas das cidades por não acumularem  produção, significa dizer que toda cidade o faz. Até certo ponto é verdadeiro: armazéns distribuidores e pontos de venda ao varejo são característicos das urbe - exceto nas metrópoles, onde mesmo os grandes armazéns amiúde não tem espaço. A metrópole recebe alimento de cidades menores ao seu redor, então cai a regra de ser a cidade um grande ponto acumulador de alimento. Esta regra aplica-se a cidades menores, o que evidencia termos necessidade de cautela ao aceitarmos colocações simplistas.

Mesmo o conceito de complexidade social parece-me incipiente. Ele nasce da visão que contrapõe, de um lado a complexa estrutura de funções, hierarquia e administração citadina com, de outro lado, um grupo social coeso, atuando juntos num mesmo objetivo: os aldeões que caçam, pescam ou coletam e retornam ao fim do dia com seus produtos. Essa é a rotina de muitos índios, até os dias de hoje, isolados na selva. Cabe perguntarmos: trata-se de um grupo social tão elementar assim? Ou encontramos ali membros que se distinguem por funções específicas no grupo? Um chefe tribal está isolado ou conta com outros elementos auxiliares, por exemplo, anciãos compondo um conselho? Há um líder espiritual? Mulheres tem função muito distinta dos homens, isso é amplamente conhecido. Crianças,do mesmo modo. Jovens entrantes na vida adulta ou já passaram ou ainda passarão por um ritual apropriado. Os muito idosos possuem consideração e poder além dos demais? Há alguns membros designados como espiões ou pioneiros avançados cuja missão é procurar informações de novos territórios ou saber dos vizinhos na região? Ao respondermos tais questões, acredito, formaremos um quadro social e político do grupo menos sumário do que imaginávamos. 

Naturalmente esta constituição grupal está longe do cotidiano de uma cidade - mesmo a menor delas - todavia revela-se estruturada sob rígidas diretrizes comportamentais. O olhar ocidental europeu tende a enxergar nestes grupos de aldeões uma elementaridade que desaparece ao aproximarmos mais detidamente para análise. Assim, cai por terra o segundo ponto distintivo entre cidade e aldeia: a complexidade da rede social. Antes de considerarmos tais diferenças como sinais de urbe e não urbe, parece óbvio que o tamanho do grupo e a unicidade de propósito é que são geradoras destas diferenças do grau de interrelações sociais e de funções especializadas. 

Imaginemos um grupo de madereiros laborando no interior do Canadá. Estarem isolados numa pequena comunidade, possuirem organização política e administrativa mínima os tornam aldeões? Ora, tais homens podem morar numa mesma vila; pertencerem à mesma cooperativa e levarem uma vida repetitiva - mas o que vai caracterizar a vida em cidade ou em aldeia? Na realidade, que diferença isso faz, como pesquisa científica? Assim pretendo colocar como evidente a futilidade em se tentar definir com rigor o que é cidade e o que é aldeia. 

Pensemos num grupo de lavradores no interior do país. Cada família possui suas tarefas de terra e vai à cidade, amiúde, semanalmente para vender e comprar produtos. Este é o cenário benevoliano: tudoé tão claro! Os lavradores saem da roça, da aldeia, e buscam ocasionalmente a cidade. Perfeito. A coisa complica quando surge longe da cidade e próximo dos agricultores, um ponto intermediário de encontro: a vila. Muitas vezes a vila é apenas uma "rua" com bodegas, meia dúzia de residências de lavradores - cujas casas tem no lado oposto um gigantesco "quintal" que é seu sítio ou chácara. O tamanho destas vilas varia muito e sabemos que ao crescerem, chegará ao ponto em que, oficialmente, ser tornam uma cidade. 

O fato de administrativa e burocraticamente serem nomeadas cidades é o diferencial entre aldeia e cidade? Naturalmente que não, pois antes disso há deve ter se estabelecido ali uma teia social mais rica, espaços e prédios uso comum e assim por diante. Não se nasce "cidade" por decreto: ela surge pelo uso comum, pelo encontro. Se não conseguimos distinguir com precisão o momento de seu nascimento e transformação - exceto sua constituição jurídica, esta sim, facilmente estabelecida - inclino-me entender que essa distinção é, na prática, vã.

Daí a fraqueza do conceito belevoliano em buscar de modo sumário apontar com tanto rigor o que é cidade e o que é aldeia. Naturalmente o respeito e admiração em relação ao pensador e autor de tantos volumes relevantes, precisa ser reforçada aqui. Não se trata de, em hipótese alguma, desmontar a proposição clássica, mas simplesmente de enfatizar que há valor em sermos mais flexíveis ao manipular alguns paradigmias. A situação do urbanista que tenta definir precisamente o que é uma cidade e o que é uma aldeia, é semelhante ao médico tentando responder o que é um infante e quando ele se torna adulto. O Direito resolveu a questão de modo sumário: até os 12 anos, temos a criança, o paciente do pediatra. Após essa data, deverá ser atendido por clínicos como um "adulto". Do ponto de vista jurídico, ótimo! A questão foi resolvida. Entretanto qualquer pessoa com alguma vivência sabe quão diferentes são os jovens de doze anos, entre si. Alguns muito robustos e amadurecidos, enquanto outros, frágeis, e ingênuos como legítimas crianças que são.  Tal parece ser o drama em se delimitar peremptóriamente aldeia e cidade.

Neste ponto é justo entender que o professor italiano não intentou impor um parâmetro rígido nessa questão, uma vez sua primeira frase no primeiro parágrafo de História da Cidade, reza:

"Mal podemos imaginar de maneira aproximada o mundo em que viveram por milhares de gerações, os homens paleolíticos."  Talvez o paradigma benevoliano tenha seguido o mesmo caminho dos pensamentos fruedianos - são leis pétreas aos seus seguidores, quando, de fato, nasceram como sugestões e esboços de um novo mapeamento em uma disciplina inteiramente nova. Em outras palavras: os discípulos, amiúde, são mais aguerridos e apaixonados por conceitos "imutáveis" que os seus mestres, que simplesmente apontaram hipóteses a serem verificadas. 

Sob este prisma, o conceito de aldeia e cidade, proposto pelo nosso autor, é útil e lança alguma luz na gênese da construção urbana.


LEWIS MUMFORD e sua obra A CIDADE NA HISTÓRIA

Neste livro temos outra abordagem muito mais profícua e estimulante. Mumford enfrenta a velha questão e busca, de muitos modos, e em vários capítulos, propor a diferença entre cidade e aldeia. A diferença não é o tamanho, embora normalmente a aldeia seja bem menor que uma cidade; mas sim a diversidade e o encontro de várias classes de pessoas com objetivos diferentes.


(continuaremos...)


Bibliografia

BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade, 1a. reimpressão da 4a. edição de 2005, editora Perspectiva, São Paulo.

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